Dia 1
O primeiro dia do MEO Kalorama arrancou com uma pergunta no ar: será que ainda conseguimos surpreender-nos com velhos conhecidos? Neil Tennant e Chris Lowe, os Pet Shop Boys, abriram o palco principal como quem regressa a casa — pela segunda vez em dois anos, com o mesmo espetáculo de greatest hits. O duo veio cá em 2023 (Primavera Sound Porto) e, desde então, lançou um muito recomendável álbum novo (“Nonetheless”, que ficou tristemente de fora), mas quem é que se vai chatear quando se ouve “It’s a Sin” com lasers a rasgar o céu? Houve coreografia de luzes, máscaras sci-fi, êxitos atrás de êxitos e outros momentos que nos lembram porque é uma das bandas mais referenciadas pelas bandas que hoje ouvimos. Foi déjà vu, sim — mas daqueles bons, tipo quando te lembram que “Domino Dancing” continua a ser um banger.
Antes veio o senhor que fala em línguas mortas e ainda faz sentido: Father John Misty. O nome do disco novo — Mahashmashana — soa a ritual sagrado e, em palco, a coisa também teve algo de místico. Poucas palavras, pouca pirotecnia, mas muita presença. Tillman já não precisa de seduzir ninguém com piruetas: chega-lhe abanar ligeiramente a anca. Entre funk melancólico e baladas dramáticas, entregou um concerto curtinho, certeiro e com uma aura de “deixem-me só cantar antes de o mundo acabar” (bem na mouche com o ataque dos EUA ao Irão). Assinamos por baixo.
Os L’Impératrice tentaram a sua sorte noutro palco. Não era fácil: sem a vocalista original e sem a moldura mágica de Paredes de Coura , havia ali muito por provar. Maud “Louve” Ferron pegou no microfone com nervo q.b. e foi fazendo o seu caminho. A verdade é que a estrela principal continua a ser o groove: baixo pegajoso, teclados vintage e troca-troca de instrumentos entre músicos que parecem viver numa jam eterna. Brilharam mais pelo som do que pelo carisma, mas quando “Entropia” bateu, bateu mesmo — o público não pediu bis, mas dançou como se tivesse pedido.
Para terminar o serão, veio a parada psicadélica dos The Flaming Lips. Podiam ter ficado desanimados com o esvaziar do recinto? Podiam. Ficaram? Nem por isso. Wayne Coyne e os seus muchachos encheram o palco com insufláveis cor-de-rosa, confettis e um balão gigante a gritar “Fuck Yeah Kalorama Lisbon”. Tocaram o seu grande álbum de 2002, “Yoshimi Battles the Pink Robots” na íntegra, com espírito de missão e alegria infantil. A plateia que resistiu até ao fim foi premiada com um momento de amor coletivo em “All We Have Is Now”. E se o rock já não muda o mundo, ao menos ainda consegue arrancar um sorriso genuíno — e um abraço a um robô gigante.
No início dodia, David Bruno brindou o Kalorama com o seu habitual humor desconcertante, charme meio azeiteiro e uma boa dose de portugalidade. Mesmo com o calor a apertar, manteve o casaco vestido até ao momento certo — e claro, quando o tirou, revelou uma imagem da Capela do Senhor da Pedra, “onde a Nicole Scherzinger foi pedida em casamento”. O concerto foi tudo menos convencional: entre guitarradas sentimentais do inseparável Marquito, piadas sobre Isaltino Morais e performances surreais do hypeman António Bandeiras, o público riu, cantou e dançou, mesmo sob o sol impiedoso da tarde.
Dia 2
Eram duas da manhã, mas o corpo nem queria saber das horas. Quando FKA Twigs apareceu no palco principal do MEO Kalorama, ficou logo claro: aquilo não ia ser um concerto qualquer. Nada de vir cantar só os hits e sair — isto era arte, era performance, era corpo, luz, sombra e muito, muito erotismo. “Eusexua”, o mais recente álbum da britânica, serviu de base para este ritual pop-futurista, uma espécie de missa techno passada numa catedral industrial com alma de rave escondida.
Com a precisão de quem já foi bailarina antes de se fazer estrela, Twigs comandou um grupo de dançarinos meio nus, meio deuses, enquanto a estrutura metálica do palco brilhava como um Transformer em extinção. Estávamos num universo alternativo onde a pop é avant-garde e a sensualidade é levada a sério. Três atos, uma barra de pole dance (óbvio que era para ela), e uma audiência hipnotizada que acabou o concerto em silêncio religioso ao som da delicada “Cellophane”. Ela é, sem dúvida, uma espécie de semi-deusa. Se alguém ainda duvidava, aquela ovação no fim tratou do assunto. Pena apenas o recinto meio despido. Twigs merecia a maior enhcente do festival.
Antes dela, os Scissor Sisters tinham já transformado o mesmo palco numa pista de dança arco-íris. E sim, foi mesmo uma festa revivalista. O regresso aconteceu depois de 13 anos de silêncio e com algumas baixas — Ana Matronic e Paddy Boom ficaram em casa — mas Jake Shears e companhia trouxeram energia como se não tivessem envelhecido um dia. Hits como “Let’s Have a Kiki”, “Fire With Fire” e claro, “I Don’t Feel Like Dancin’”, foram recebidos como se fossem hinos de um culto colorido e hedonista. Foi tudo o que se queria de um concerto de reunião: exagerado, divertido, nostálgico e com uma celebração descarada da liberdade queer. Foi o regresso de uma banda que nem sequer sabíamos que precisávamos.
Se os Scissor Sisters são glitter e purpurina em forma de som, os Model/Actriz são a versão punk, crua, ruidosa e suada da mesma liberdade. E que concerto!!! Cole Haden, o vocalista, apareceu de balaclava, saltos altos e luvas até ao cotovelo — tipo Audrey Hepburn do submundo — e arrasou. Literalmente: saltou a barreira, provocou o público (“cheiram todos mal e é isso que eu quero”), rebolou, gritou, recitou. A atuação foi tão intensa que parecia um exorcismo glamoroso. Ao vivo, a banda soa a uma descarga elétrica com distorção no máximo e uma batida que ninguém estava à espera de ver associada a noise rock. Canções como “Crossing Guard” ou “Doves” quase rebentavam com o sistema de som. E mesmo quando ele falhava, ninguém queria saber — o corpo estava demasiado ocupado a abanar.
Ainda no capítulo da intensidade (mas agora com outro tipo de escuridão), apareceram os Boy Harsher, uma espécie de Bonnie & Clyde da darkwave. Jae Matthews, enigmática, e Augustus Muller, concentradíssimo, trouxeram um set que parecia retirado diretamente de um filme do David Lynch — sombrio, sexy, melancólico. A voz grave de Matthews, meio monocórdica, meio hipnótica, colava-se aos beats industriais e às melodias góticas que Muller disparava com sintetizadores, pads e um shaker distorcido (sim, um shaker). Esta é daquelas bandas que se quer ver num clube escuro, paredes fechadas e suores partilhados.
Azealia Banks, por sua vez, foi… Azealia Banks. E isso quer dizer: caótica, magnética, talentosa, sem filtros. Não precisou de bailarinos nem de fogo de artifício. Só ela, um DJ e uma tonelada de atitude. O público estava rendido desde o início e foi ficando ainda mais colado à medida que ela saltava entre rimas aceleradas, refrões melódicos e aqueles momentos a cappella que só quem tem pulmão e confiança pode dar-se ao luxo de fazer. Sim, Azealia continua a ser um furacão de talento travado por polémicas e más decisões de carreira. Continua a ser um nome mais conhecido por tweets do que por discos. Mas também continua a ser uma força da natureza em palco.
Por fim, houve Róisín Murphy. Quem já a viu noutras edições sabe o que ela é capaz de fazer — um furacão de funk, disco e excentricidade. Nunca dá dois concertos iguais. Começou bem, com “Pure Pleasure Seeker” e “Simulation” a puxarem pelo ritmo e pelos outfits irreverentes. Houve versões refrescadas dos clássicos — como “The Time is Now”, que apareceu com ar tropical. No final, Róisín virou costas para o público, a interagiu com uma câmara no palco em vez de com os fãs. Quase como se estivesse a atuar para outro festival, noutro plano de existência. Os fãs não se importaram: Murphy tem tudo para ser rainha, mesmo de costas viradas para a plateia.
Dia 3
O último dia do Kalorama acabou com Damiano David, que com apenas um álbum editado foi uma aposta arriscada como cabeça de cartaz. O vocalista dos Måneskin foi sozinho ao palco MEO — e trouxe com ele um show limpinho, ensaiado até ao último detalhe, com algumas covers: Too Sweet (de Hozier) e Nothing Breaks Like a Heart (Miley Cyrus). “Toco o que quero, por isso chupem!”, referiu em tom rebelde. O público esteve com ele e em força — alguns desde as quatro da tarde, braços cruzados na grade, a guardar lugar. E não saíram insatisfeitos.
Com os Måneskin em pausa, Damiano quis mostrar que também sabe andar com as próprias botas, e apresentou o seu projeto a solo, “Funny Little Fears”. Segundo o próprio, foi uma forma de lidar com os seus demónios pessoais e partilhar algo mais íntimo. As canções parecem saídas de um gerador automático de “pop rock genérico 2000-2020”. mas a voz poderosa e a banda competente, fizeram deste, um espetáculo (curto, de 50 minutos) que não ofende, mas que também se esquece logo a seguir.
Antes de Damiano, o palco tinha pertencido a Jorja Smith. Depois de ter passado pelo Nos Alive há uns anos, ainda no início da sua carreira, a britânica voltou aos palcos portugueses e, apesar de alguns tropeções — um microfone meio ensonado no início e um vestido pouco amigo do palco —, provou que a sua voz é uma coisa rara neste mundo. Jorja é o oposto da pirotecnia pop: sobe, desce, respira, encanta. Apresentou um concerto sólido, de aura clássica e elegância tranquila, a fazer lembrar as divas do soul com toque contemporâneo. A sua banda, afinadíssima, levou-nos por vários cantos do R&B moderno, desde o funk suave ao dancehall com sotaque jamaicano, passando por momentos de afrobeat e até uma pitada de hip-hop old school. “Teenage Fantasy” em a capella foi um dos momentos altos, e “The Way I Love You”, com aquele bassline rasgadinho, pôs a plateia a mexer.
No início da tarde, os BadBadNotGood trouxeram classe e psicadelismo jazzístico para um pôr do sol de luxo. A banda canadiana já é veterana em Portugal e mostrou porquê: meteram-nos numa viagem sonora. Sem necessidade de refrões pegajosos ou letras dramáticas, este concerto foi pura paisagem sonora. Houve espaço para improviso, tributos emocionantes (com versões de Roy Ayers e Sly Stone) e até um instrumento estranho com nome de robô: o EVI — um trompete eletrónico que parecia ter saído de um filme de ficção científica dos anos 80. O público, mesmo sem conhecer bem o repertório, ficou rendido à vibe.
A fechar a noite no palco San Miguel, Branko assumiu o papel de embaixador da nova Lisboa — aquela que junta vozes da lusofonia com eletrónica do mundo, tudo misturado com calor humano e batidas que nos fazem dançar com o corpo todo.A nova formação ao vivo deu uma nova dimensão ao seu som. Acompanhado por banda e cantores de apoio, Branko mostrou que sabe montar um espetáculo com coração e músculo. Passou por temas antigos, como “Nafé” e “Atla”s, e mais recentes, como “Água com Sa”l ou “Mood 111”. Pelo caminho, foi invocando fantasmas de Buraka Som Sistema, sem nunca se perder na nostalgia. Demorou a aquecer, mas quando o DJ desceu até ao fosso e fez um mini-DJ set com novidades (incluindo uma faixa com os BaianaSystem), a Bela Vista explodiu. Lisboa, mais do que nunca, sentiu-se em casa.