Em Cancionera, o mais recente trabalho de Natalia Lafourcade, a artista mexicana assume um alter ego que não só dá título ao disco, como molda o seu espírito e abordagem criativa. Longe de ser apenas um conceito estético, a “Cancionera” funciona como uma libertação artística, um espaço onde Lafourcade permite-se “desligar a mente e criar desde outro lugar”. Trata-se de um regresso às raízes, mas também de uma afirmação madura: aqui, não há pressa, nem filtros, só música feita com tempo, alma e intenção.
Gravado ao vivo em fita analógica, com 18 músicos em estúdio e sem edições digitais, Cancionera soa cru e humano, com aquele calor que só os discos captados à moda antiga conseguem oferecer. É um álbum onde se ouve tudo: o chiar do banco, a respiração dos instrumentos, a vibração de cordas que não foram polidas digitalmente. Em tempos de perfeição pasteurizada, Lafourcade opta pela vulnerabilidade como forma de beleza.
As 14 faixas de Cancionera percorrem géneros como o bolero, ranchera, cumbia, tango, rumba, jazz e huapango, sempre com uma naturalidade que prova que a artista não está a experimentar estilos, mas sim a habitá-los. Há temas instrumentais delicados, como “Apertura Cancionera” e “Lágrimas Cancioneras”, que funcionam como momentos de introspecção meditativa, quase cinematográfica. Já “Cocos en la playa” surge leve e dançável, com um humor quase tropical, numa espécie de celebração do prazer simples.
Os duetos, como é habitual no universo de Lafourcade, não são meras colaborações para chamar atenção: são diálogos artísticos cuidadosamente escolhidos. David Aguilar, Israel Fernández, Hermanos Gutiérrez e Diego del Morao emprestam as suas vozes e instrumentos a canções que se tornam, por isso, mais ricas em tonalidades e emoções. A presença dos Hermanos Gutiérrez, por exemplo, em “Luna creciente”, cria uma atmosfera quase mística, entre o deserto e o sagrado.
Liricamente, Cancionera é um exercício de sinceridade emocional. As letras oscilam entre a claridade e a sombra, o amor e a perda, o ontem e o agora – sempre com uma poesia desarmante, mas nunca excessivamente rebuscada. A faixa-título, “Cancionera”, resume esta viagem com um verso que poderia ser um lema artístico: “Canta libre al viento, canta siempre tu verdad.”
A produção, a cargo de Adán Jodorowsky (também responsável pelo deslumbrante De Todas Las Flores), mantém-se fiel a essa verdade: os arranjos são elegantes sem serem luxuosos, há espaço para o silêncio, para a respiração e até para sons da natureza. Nada aqui parece construído para agradar algoritmos – tudo vive de carne e osso.
Cancionera não é um álbum que se consome rapidamente. Exige atenção, escuta paciente, e talvez até algum silêncio interior. Mas recompensa (e de que maneira!) com beleza, verdade e um sentido de intemporalidade raro na música contemporânea. Num panorama musical saturado de reinvenções vazias, Natalia Lafourcade não precisa de mudar de pele para se manter relevante. Basta-lhe continuar a escavar fundo nas suas raízes e dar voz àquilo que sente.
E é precisamente isso que faz de Cancionera uma das obras mais completas e comoventes da sua discografia – e um dos álbuns incontornáveis de 2025. Porque quando Lafourcade canta, fá-lo como quem confessa e partilha: sem filtros, sem pressa, mas com a certeza de que a canção ainda é, e sempre será, um lugar de verdade.