Abrigados da chuva, entre concertos, alguém me perguntava se esta era a primeira vez que ia Mucho Flow. Fiz rapidamente uma conta de cabeça e respondi que não, na verdade era a minha décima primeira vez consecutiva. Observei as caras de espanto à minha volta, mas também a concordância colectiva. E percebo porquê.
O Mucho Flow é um festival que praticamente desde a sua génese, adoptou uma postura de curadoria muito forte, apostando em artistas que poderiam ser mais ou menos conhecidos, mas que teriam um fio condutor, quase a contar uma história que faz sentido na cabeça de quem programa e que passa, nem que seja numa vertente mais emocional, para o público que assiste aos concertos.
Há sempre um olhar para o futuro, mas sem alienar o público. Por isso é que é difícil aplicar a expressão “avant-garde” ao Mucho Flow, pois o festival não está nesse lugar, mas também não o evita. Abraça-o para transmite-o ao público com o calor muito particular do Norte do país.
Outro aspecto crucial do Mucho Flow é a forma como expressa, na sua plenitude, a cidade de Guimarães e os vários equipamentos culturais. São vários e este ano nestes locais: Centro Cultural Vila Flor (em duas salas), Teatro Jordão (igualmente duas salas para concertos, mais uma para os debates promovidos pelo Mucho Flow), Teatro são Mamede, CAAA – Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura e Património Club.
Pelo meio e entre concertos, oportunidade para explorar a cidade, as ruas e ruelas de construção medieval, os vários cafés e tascas (também acarinhados pela promotora Revolve no festival “Vai-m’à Banda”) e os muitos encontros que o Mucho Flow proporciona. E entre conversas com conhecidos e desconhecidos, a surpresa constante de uma programação onde colocamos confiança, especialmente quando não conhecemos por completo o cartaz.
E é esse sentimento de efervescência pela descoberta que me atrai, ano após ano, ao festival minhoto. Aquela oportunidade de estar à frente do palco e ser transportado para o universo muito particular de determinado artista e sair do concerto completamente conquistado, esbofeteado pelo som e emoções, como quando acontecia na adolescência. E isso é coisa rara.
Como contexto, este é um festival que em edições anteriores já recebeu Amen Dunes, Circuit Des Yeux, black midi, Cave, Girl Band (agora Gilla Band), sega bodega, Ditz, Heavy Lungs, Iceage, Anna B Savage, entre muitos, muitos outros. Incluindo ainda um olhar muito preciso sobre a produção nacional, desde logo as edições Revolve, mas não só. E claro, DJ Lynce, tradição maior do festival, pois encerra sempre todas as edições do Mucho Flow. E como se percebe, é um festival que se move em diferentes géneros, numa mistura de pop, indie, electrónica e música mais experimental. Desta forma, o Mucho Flow parece estar sempre no limiar das novas “cenas” musicais, das novas tendências que no futuro vão seguramente ter mais público e mais jornalistas a ver ou a escrever sobre. Por isto tudo, uma das formas de medir o pulso à música contemporânea no nosso país, passa precisamente pelo Mucho Flow. E é por isso que não devem faltar!
Nesta última edição, entre 30 de Outubro e 01 de Novembro, foram três dias intensos de música e também alguns debates que tentam aproximar o público e promotores, com diferentes assuntos sobre a criação artística.
Entre os muitos concertos, seguem-se alguns destaques de relevo.
Pedro Melo Alves
Foi mesmo logo na abertura do Mucho Flow, primeiro concerto na Black Box do CAAA. O exímio baterista e colaborador num sem número de projectos (Surma, The Rite of Trio, Memória de Peixe) deu um concerto que dificilmente vai sair da memória. A solo na bateria, mas com a inclusão de pads electrónicos, Pedro Melo Alves criou texturas variadas e ritmos intensos, integrando-os com visuais hipnotizantes e que respondiam ao dramatismo colocado na bateria. Um só único instrumento, mas com uma palete de cores infinitas.

HiTech
Oriundos de Detroit, os HiTech têm na sua música o legado do techno daquela cidade norte-americana. Quando o cruzam com referências do hip hop, percebemos que estamos perante algo novo e especial. E na verdade, foi um frenesim de ritmo e em tudo inesperado, especialmente no imenso palco do Centro Cultural Vila Flor, onde aliás o público também se posiciona.

Infinity Knives + Brian Ennals
Dupla natural de Baltimore, constituída pelo produtor Tariq Ravelomanana e pelo rapper Brian Ennals apresentaram-se com muitos sorrisos e humor, mas sem que por isso relatassem sobre os problemas sociais e políticos da sua terra natal e do mundo. Invocam as produções do hip hop old school dos anos 80 e 90 para criar algo novo e refrescante. Este foi um dos concertos que mais pessoas arrastou no segundo dia de Mucho Flow às garagens do Teatro Jordão.

plus44Kaligula
Depois de uma noite longa e marcada pela chuva intensa, o terceiro dia de concertos começou com uma das surpresas do festival: plus44Kaligula. É o alter-ego da artista Cally Statahm, que de uma assentada cruza sons da pop, do glam, do jazz e da música clássica. Há apropriação, desconstrução, loops e muitas colagens sonoras. E muita teatralidade num espectáculo em que Cally surge sozinha em palco, com um aparato de luzes com muito propósito e uma espécie de suporte de microfone que é também escultura/ peça artística e que era usada para suportar o peso da artista, no culminar de passos teatrais ao longo do espectáculo. Foi ums dos momentos mais surpreendentes do Mucho Flow, especialmente se considerarmos que plus44Kaligula só tem um EP, Double Blind, editado em Setembro.

bbb hairdryer
É uma das bandas nacionais do momento. Distorção, grunge, raiva, perigo e tudo sob a liderança de Elisabete Guerra. É uma voz intensa, tanto quando as guitarras e bateria estão no seu ponto mais alto, como quando está a sós com o silêncio. E entre paredes de distorção, teatralidade e letras de dor, parou várias vezes para pedir “queers on front, women on front, shorts on front”, assegurando que estávamos num lugar seguro e sem preconceitos. É assim que o rock tem de ser e aqui a ser ditado por uma voz que acredito, vai marcar esta geração. Também acredito que é com estes concertos que a malta nova vai pegar a seguir nas guitarras.

YHWH Nailgun
A banda que mais queria ver no Mucho Flow. E foi tudo aquilo que estava à espera, com um som novo e experimental, marcado desde logo pela percussão imparával do baterista Sam Pickard e com o vocalista Zack Borzone a saltar, a percorrer o palco e a olhar atentamente o seu público entre pausas de descargas de noise, proporcionadas por sons cortantes de guitarra e sintetizadores. Era um dos concertos essenciais deste Mucho Flow, ver a banda certa no momento certo, durante a digressão do álbum de estreia 45 Pounds.

DJ Lynce
A viver no Porto, Pedro Santos é o nome residente do Mucho Flow e representa a ligação do festival a sonoridades mais electrónicas e apontadas à pista de dança. Todos os anos DJ Lynce apresenta um set de sonoridades diferentes, como aconteceu há um ano, quando estreou no seu set um sintetizador que ia modulando em tempo real. Não é fácil resistir até ao momento de entrada em palco, no Teatro São Mamede, para a última actuação do festival. E após tantos concertos e muitas aventuras ao longo de três dias, é difícil reter os sons que encerram o Mucho Flow. Mas a memória diz-me que foi um set extraordinário, com batidas duras e sons flutuantes de sintetizadores. E se conseguirem aguentar até ao momento de maior tradição do Mucho Flow, não se vão arrepender.

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