“Foi Só Um Acidente”: o peso do que não se pode esquecer

Eduardo Marino

O Festival de Cannes raramente se engana. Ao premiar Foi Só Um Acidente com a Palma de Ouro, o júri reconheceu não apenas um filme, mas um gesto de resistência.

O novo trabalho de Jafar Panahi chega envolto em contexto político e humano que não pode ser ignorado. O realizador iraniano, há anos silenciado e impedido de filmar pelo regime do seu país, regressa com uma obra que afirma, de forma serena e contundente, que o cinema continua a ser um território de liberdade. A projeção em Cannes terminou com oito minutos de aplausos, uma daquelas reações em que a emoção não parece encenada. O júri, presidido por Greta Gerwig, deu-lhe a Palma de Ouro — e, com isso, um lugar ao lado de vencedores recentes como Anatomie of a Fall, Triangle of Sadness, Titane, Parasite e Shoplifters. É uma linhagem de filmes que questionam as fronteiras entre moral, corpo e sociedade.

Foi Só Um Acidente inscreve-se nesse mapa através de uma história simples e tensa: Vahid (interpretado por Vahid Mobasseri) é um ex-prisioneiro político que acredita ter reencontrado o homem que o torturou anos antes. O encontro acidental transforma-se em dilema moral, quando Vahid e três amigos decidem raptar o suposto carrasco para o confrontar. O filme evita o caminho do suspense convencional e investe na dúvida — o que acontece se a vingança se basear num erro de memória?

Panahi, conhecido por obras como Taxi Tehran (2015), Offside (2006) e The Circle (2000), mantém aqui a linha que sempre o distinguiu: filmar a vida iraniana a partir do quotidiano, deixando que a política entre pelas frestas. O filme, rodado discretamente nos arredores de Teerão, usa planos longos e câmara imóvel, como se a observação fosse a última forma de resistência.

Em conferência de imprensa, o realizador afirmou que “o silêncio pode ser uma forma de gritar”. Foi Só Um Acidente parte dessa ideia. Não há discursos inflamados nem declarações explícitas contra o regime, mas cada cena carrega a memória de um país em vigilância.

O elenco trabalha num registo discreto, sem dramatismo excessivo. As interpretações sustentam a ambiguidade moral que o filme exige: a dor é real, mas a certeza nunca o é totalmente.

Ao lado dos últimos vencedores da Palma de Ouro, Foi Só Um Acidente distingue-se pela sobriedade. Onde Titane ou Triangle of Sadness procuravam o choque, Panahi procura o silêncio. Onde Parasite expunha o conflito social, aqui o conflito é interior, entre a culpa e o perdão.

Em Cannes, vários críticos sublinharam o contraste entre a calma do filme e a violência latente que o atravessa. Outros viram nele uma espécie de resposta de Panahi à própria censura — um gesto de quem continua a filmar mesmo quando o proíbem.

Partilha

TAGS