Cícero está de regresso com o disco Uma Onda em Pedaços após um hiato de cinco anos sem lançar inéditos (o mais longo da sua carreira) e que foi marcado por perdas, mudanças e uma inevitável reorganização pessoal. O álbum é, antes de mais, uma espécie de manta de retalhos afectiva e sonora, um mergulho no caos íntimo de quem se viu em fragmentos e decidiu transformar esses cacos em música.
Ao longo das faixas, os géneros misturam-se de forma orgânica e elegante: há jazz, forró, rap e até ecos de música erudita, tudo a fluir sem etiquetas ou amarras. É uma reinvenção refrescante, com o ar de quem abriu as janelas do estúdio interior para deixar entrar novas luzes e sons. Logo no tema de abertura, “Pássaro Nave”, temos versos como “quando estava, não estava, andava desligado” que espelham esse estado de espírito de reconstrução e redescoberta.
O disco não se prende a formalismos: há uma canção em inglês (“Lucille”) e outra sem idioma definido, em que a voz se torna puro instrumento. O rap surge de forma natural em “Mente Voa”, quase como um desabafo posto em ritmo, enquanto “Meu Amigo Harvey” junta Brahms, contos e cinema num cruzamento improvável entre erudição e imaginação.
As colaborações acrescentam cor e cumplicidade: Duda Beat participa em “Sem Dormir”, Tori em “Ela Disse” e Vovô Bebê em “Tranquilo”, cada um a trazer o seu toque pessoal e a reforçar o carácter plural do trabalho. Tudo parece ter sido montado com cuidado, mas sem rigidez — como se o álbum fosse o resultado de encontros espontâneos entre memórias, afectos e experimentações.
No contexto da carreira de Cícero, Uma Onda em Pedaços representa uma evolução natural. O compositor delicado de Sábado e A Praia mantém a sensibilidade, mas agora explora um território mais livre, mais aberto, onde o experimental e o emocional coexistem sem fronteiras. O hiato foi essencial para que este regresso reflectisse não apenas as perdas e pausas da pandemia, mas também a reinvenção que daí nasceu.
No final, Uma Onda em Pedaços consegue ser, ao mesmo tempo, complexo e acolhedor. É um disco que não simplifica emoções, mas também não se deixa afogar por elas. Mostra beleza na crueza, sentido no que parecia disperso. Cícero regressa inteiro, mesmo que em pedaços — e, curiosamente, é isso que o torna completo.











