Edição: Faber & Faber (2022)
A Indústria Musical Como Máquina de Moer Artistas: “Bodies” Expõe o Lado Negro da Música
O Custo Oculto da Fama
Quando Avicii foi encontrado morto em 2018, após suicidar-se num quarto de hotel em Omã, o mundo do EDM vestiu-se de luto. Mas para quem conhecia os bastidores da indústria, aquela morte não era uma surpresa isolada, era mais um capítulo de uma história sombria que se repete há décadas. Em “Bodies: Life and Death in Music”, Ian Winwood, veterano jornalista da Kerrang! e da NME, apresenta-nos o lado B das luzes da ribalta: uma indústria musical que explora sistematicamente os seus artistas até ao ponto de rutura.
A premissa de Winwood é tão direta quanto perturbadora: a música mata os seus criadores. E ele não se refere apenas às mortes mediáticas do “clube dos 27” – Amy Winehouse, Kurt Cobain, Jimi Hendrix, Jim Morrison. Refere-se à forma como a indústria musical normaliza comportamentos autodestrutivos, romantiza o abuso de substâncias e menospreza problemas de saúde mental, tudo em nome do espetáculo e do lucro.
Confissões e Cicatrizes
A força deste livro reside parcialmente na própria vulnerabilidade do autor. Winwood não escreve como um observador distante. Ele próprio lutou contra o alcoolismo e depressão enquanto cobria concertos e entrevistava músicos ao longo de duas décadas. Esta dimensão autobiográfica confere autenticidade à narrativa, transformando-a num testemunho em primeira pessoa de alguém que dançou perigosamente próximo do abismo que descreve.
“Sempre soube que a música não era boa para mim”, confessa Winwood nas primeiras páginas, estabelecendo um tom confessional que mantém ao longo das 320 páginas. O autor alterna habilmente entre análises lúcidas da indústria e episódios da sua própria vida profissional, incluindo um momento particularmente revelador em que descreve como se embebedou para suportar uma entrevista com os Slipknot, para descobrir depois que o vocalista Corey Taylor estava sóbrio há meses.
Uma Crítica Estrutural, Não Moralista
O mérito de “Bodies” está na recusa em reduzir a questão a escolhas individuais ou narrativas simplistas de “sexo, drogas e rock’n’roll”. Winwood expõe as estruturas que sustentam o problema: contratos predatórios, horários de tourné desumanos, falta de apoio psicológico, romantização da autodestruição e uma cultura que vê artistas como produtos descartáveis.
Especialmente reveladora é a análise sobre como as gravadoras e managers frequentemente incentivam – tacitamente ou explicitamente – o comportamento autodestrutivo dos artistas quando este se traduz em “bom material” ou na imagem de rebeldia que vende discos. O autor ilustra este ponto com exemplos que vão desde o punk dos anos 70 até ao hip-hop contemporâneo, demonstrando como a indústria lucrativa e sistematicamente com o sofrimento dos seus talentos.
Do Problema às Soluções
Winwood não se limita a constatar o problema – ele questiona porque é que aceitamos como “normal” que músicos morram jovens, quando tal seria inaceitável noutras profissões. Como ele provoca: “Se advogados ou médicos morressem regularmente aos 27 anos, haveria comissões de inquérito e reformas imediatas. Na música, fazemos t-shirts comemorativas.”
O livro apresenta estatísticas arrepiantes: músicos têm expectativa de vida significativamente menor que a população geral, taxas de suicídio quatro vezes superiores e incidência de depressão três vezes maior. Dados que fazem questionar por que consideramos romanticamente inevitável este “tributo” que a música cobra dos seus praticantes.
Na secção final, o autor aponta caminhos para mudança: maior proteção contratual para artistas, períodos de descanso obrigatórios entre tournés, acesso a cuidados de saúde mental especializados e uma reformulação da cultura que glorifica o autoflagelo dos artistas.
Winwood cita exemplos positivos de transformação, como a iniciativa Help Musicians UK, e artistas que estão a quebrar o silêncio sobre saúde mental, como James Blake e Florence Welch. Estas histórias oferecem um vislumbre de esperança num panorama predominantemente sombrio.
Em resumo
“Bodies: Life and Death in Music” é um livro importante e necessário, que desafia os leitores a questionar o preço humano da música que consomem. Numa era onde o streaming paga centésimos aos artistas enquanto as tournés se tornam a principal fonte de rendimento – com a pressão adicional que isso acarreta – a análise de Winwood é mais pertinente do que nunca.
Este não é um livro confortável de ler, mas é essencial para quem ama música e se preocupa com as pessoas que a criam. Winwood escreve com a autoridade de quem viveu nas trincheiras da indústria e com a paixão de alguém que, apesar de tudo, continua a acreditar no poder transformador da música – quando criada em condições humanas.
A pergunta que fica no final não é se a música mata os seus criadores, mas se estamos dispostos a continuar a consumir arte que se alimenta da destruição dos artistas. Como Winwood sugere nas suas páginas finais: “Talvez o verdadeiro ato de rebeldia na música hoje não seja atirar televisores pela janela do hotel, mas exigir oito horas de sono e um psicólogo disponível nas tournés.”
