“Boots”: entre a farda e o segredo

Eduardo Marino

Baseada no livro The Pink Marine, Boots segue um jovem Marine nos anos 90, quando ser gay era um segredo perigoso.

Há histórias que não precisam de muito dramatismo para comover. Boots, nova série da Netflix, é uma delas. Inspirada nas memórias reais de Greg Cope White, segue Cameron Cope (interpretado por Miles Heizer), um adolescente que se alista nos Marines em 1990 — numa América onde a homossexualidade ainda era oficialmente proibida nas Forças Armadas. O silêncio é o seu escudo.

A série parte de uma ideia simples: o que acontece quando alguém tenta encontrar o seu lugar num sistema que o exclui à partida. Em vez de seguir o caminho do melodrama, prefere mostrar o quotidiano disciplinado da recruta — as ordens, as marchas, o corpo levado ao limite. O uniforme, mais do que proteção, é uma máscara.

Boots fala tanto sobre o treino militar como sobre o treino emocional de quem precisa de esconder o que sente. As questões de identidade estão lá, mas quase sempre nas entrelinhas — nos olhares, nos gestos contidos, nas palavras que ficam por dizer. Essa contenção torna a série realista, mas também fria; sentimos empatia, mas raramente calor. Falta-lhe mergulhar mais fundo naquilo que o silêncio faz por dentro.

Onde a série acerta é no equilíbrio entre dureza e humanidade. O realizador não romantiza a violência do treino, mas também não a transforma em espetáculo. As cenas físicas são cruas, e o som dos passos em fila tem mais impacto do que qualquer discurso.

O elenco ajuda a sustentar essa tensão. Miles Heizer dá ao protagonista uma vulnerabilidade discreta, enquanto Vera Farmiga é a mãe que tenta compreender o filho que nunca diz tudo o que pensa. Mas quem rouba a atenção é Max Parker, como o sargento Sullivan — uma figura que começa como o cliché do instrutor cruel e termina a revelar rachaduras de humanidade. No fim, as personagens que pareciam as mais fortes mostram-se frágeis, e as que pareciam frágeis tornam-se as mais resistentes. É essa inversão que dá densidade à história.

Apesar da sua contenção, Boots não passou despercebida. O Pentágono chegou a emitir um comunicado a chamar-lhe “lixo woke”, acusando-a de distorcer a imagem dos Marines — o que, na prática, serviu de melhor publicidade. A série não é panfletária; limita-se a mostrar um retrato humano, com as suas contradições e silêncios.

O final deixa tudo em aberto: Cameron completa o treino e aproxima-se da Guerra do Golfo. É um fecho suspenso, com cheiro a segunda temporada — talvez a oportunidade para Boots explorar não apenas o que é escondido, mas também o que finalmente se pode dizer.

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