Há poucos cineastas que contam a história do século XX com a mesma precisão emocional de Martin Scorsese. Filho de imigrantes sicilianos, asmático, criado em Little Italy, o jovem Marty cresceu a ver filmes quando não podia correr nas ruas. Essa limitação física acabou por moldar um olhar obsessivo sobre a imagem e o movimento — um olhar que Rebecca Miller transforma agora em narrativa visual no documentário Mr. Scorsese, disponível na Apple TV+, em cinco partes.
Em cinco capítulos, o filme percorre todas as eras do realizador: os primeiros anos experimentais (Who’s That Knocking at My Door), o sucesso inesperado de Taxi Driver, a autodestruição de Raging Bull, o brilho pop de Goodfellas e os desaires comerciais de obras como The King of Comedy ou Bringing Out the Dead. É um retrato que não evita os altos e baixos — os períodos de excesso, as crises espirituais e as recaídas — mas que nunca perde o foco no essencial: a energia vital que o move a filmar.
O documentário alterna memórias pessoais com cenas de bastidores e excertos de filmes, construindo um mosaico que mostra o homem e o realizador como faces da mesma pessoa. Scorsese fala da família, do bairro, da culpa católica, do medo constante de falhar e das “anger issues” que o acompanharam durante décadas. O seu humor nervoso e autoanálise quase obsessiva tornam o retrato simultaneamente íntimo e imprevisível.
Um dos trunfos de Mr. Scorsese está no painel de entrevistados. Robert De Niro surge como o cúmplice silencioso de uma vida inteira — descreve o seu primeiro encontro com Scorsese como “o início de uma língua comum”. Leonardo DiCaprio, a sua “musa” da era moderna, fala da confiança quase cega que o realizador inspira. Thelma Schoonmaker, a montadora e parceira criativa de meio século, explica como o caos das filmagens se transforma em ritmo nas salas de montagem. E muitos, muitos mais, como Steven Spielberg, Brian de Palma, Sharon Stone, Cate Blanchett ou Margot Robbie.
Rebecca Miller evita o tom de homenagem estática. O que filma é um homem em permanente reinvenção, que tanto pode falar sobre culpa religiosa como fazer vídeos de TikTok, com a filha mais nova.
Há espaço para falhas e feridas. Scorsese fala de projetos rejeitados, de crises com estúdios e de como o fracasso o salvou tantas vezes. Boxcar Bertha quase lhe destruiu a carreira; Raging Bull salvou-a. The Last Temptation of Christ quase o isolou em Hollywood; Goodfellas fê-lo voltar ao trono. Essa alternância entre desgraça e glória percorre o documentário como um refrão: cada queda foi uma aula.
O ritmo de Miller é calmo, confiante. Não há manipulação nem dramatismo: apenas tempo para ver, ouvir e compreender. No fim, percebe-se que Scorsese é talvez a pessoa que mais sabe sobre cinema em todo o mundo, mas também alguém que ainda se surpreende com ele — um homem que nunca conseguiu desligar a câmara, nem dentro de si. Obrigatório para qualquer cinéfilo.










