O sonho de Guillermo del Toro de filmar Frankenstein tem décadas. A história de um criador que desafia a morte e de uma criatura que aprende a sofrer sempre o acompanhou como espelho pessoal. Agora, finalmente, o realizador mexicano cumpre o seu projeto de vida, e o resultado é um filme que parece menos uma adaptação literária e mais uma confissão de alma — uma reflexão sobre o que é dar vida e sobre o preço de o fazer.
A narrativa segue de perto o romance de Mary Shelley. Victor Frankenstein, interpretado por Oscar Isaac, é um cientista obcecado pela ideia de vencer a morte e desafiar os limites da criação. Enclausurado num laboratório de arquitectura impossível, entre relâmpagos e engrenagens, constrói um corpo a partir de pedaços de outros, e injeta-lhe vida. A criatura, interpretada por Jacob Elordi — que substituiu Andrew Garfield, impedido por conflito de agenda —, acorda num mundo que o rejeita. Aprende a falar, a ler, a compreender, mas cada passo rumo à humanidade é castigado com isolamento e medo. Del Toro não esconde a compaixão: o monstro é a figura trágica central, e Victor o verdadeiro fantasma.
A estrutura mantém-se fiel ao livro — o confronto final no Árctico, a inversão de papéis entre caçador e caçado —, mas del Toro acrescenta camadas de emoção e simbologia que pertencem inteiramente à sua linguagem. A relação entre criador e criatura torna-se aqui um retrato de paternidade falhada, de amor que não sabe cuidar. Tal como em A Forma da Água, o realizador dá voz ao ser excluído, ao diferente, ao corpo que o mundo rejeita. Há ecos de todos os seus filmes anteriores: a devoção ao monstro, o fascínio pelo gótico, a crença de que é naquilo que assustamos os outros que se esconde o que temos de mais puro.
Del Toro sempre filmou a fronteira entre a fantasia e a carne. Em Frankenstein, essa fronteira é literal: a pele costurada da criatura é também a colagem de toda a sua filmografia. É um filme sobre o medo de criar algo que nos ultrapasse — o medo do próprio ato artístico. Talvez por isso o realizador o tenha chamado de “Everest”, o filme que precisava de fazer para fechar um ciclo.
Cada detalhe parece feito à mão — e foi: del Toro rejeitou o CGI, preferindo cenários reais e próteses físicas. E isso faz toda a diferença no envolvimento do espectador.
Jacob Elordi é a revelação absoluta. O seu monstro é uma presença silenciosa e quase litúrgica, que carrega peso e inocência. Não é o terror que domina, mas a melancolia. Elordi trabalha o corpo como instrumento: a forma como se move, o olhar que hesita, o gesto contido. A personagem, que podia ser apenas símbolo, torna-se pessoa. Ao contrário da maioria das versões cinematográficas, esta criatura não é deformidade nem caricatura — é tragédia pura.
Há em Frankenstein uma beleza que pede escala. As torres, as sombras, as paisagens de neve e ferro, o som das máquinas e dos ossos — tudo foi pensado como um épico que é, para ser visto em grande ecrã. Ver o filme na Netflix é aceitá-lo como conteúdo, e não como cinema. A luz, a textura e a monumentalidade perdem força num ecrã doméstico.
Este Frankenstein é a peça que faltava à obra de Guillermo del Toro: o encontro entre o seu amor pelos monstros e a sua própria condição de criador.











