Live Aid: quando ainda acreditávamos que o mundo podia mudar com música

Eduardo Marino

O Live Aid não foi só o maior concerto de sempre — foi talvez o último grande momento em que o mundo acreditou, genuinamente, que se podia unir por uma causa. "Live Aid at 40: When Rock ’n’ Roll Took on the World", da BBC, prova que esse mundo existiu — e faz-nos perguntar o que perdemos desde então.

Este novo documentário, com o selo de qualidade da BBC, mergulha no que aconteceu antes, durante e depois daquele que foi talvez o maior evento musical da história. E fá-lo com um equilíbrio raro: é nostálgico sem ser lamechas, informativo sem ser enfadonho, emotivo sem forçar a lágrima. Para quem o viu ao vivo — como é o meu caso —, é um regresso a uma época em que a televisão tinha impacto real, e em que a música parecia mover montanhas.

O fenómeno arrancou com “Do They Know It’s Christmas?”, gravado por Bob Geldof, Midge Ure e um supergrupo britânico chamado Band Aid. A canção tornou-se imediatamente um dos singles mais vendidos da história do Reino Unido, angariando milhões para a crise humanitária na Etiópia (Geldof e Ure não esperavam sequer £70 000; acabaram por recolher milhões). A resposta americana veio com “We Are the World”, um hit semelhante com grandes nomes dos EUA como Michael Jackson, Lionel Richie e Tina Turner, organizado pela USA for Africa.

No dia 13 de julho de 1985, ocorreram dois mega concertos simultâneos: em Wembley, Londres, e no Estádio JFK, Filadélfia. Durante mais de 16 horas, cerca de 1,9 mil milhões de pessoas assistiram ao vivo — quase 40% da população global — numa transmissão inédita em mais de 100 países. O objetivo? Angariar fundos para combater a fome, usando o poder da música.

O documentário da BBC, dividido em três episódios, captura o ethos da época e a dimensão tecnológica e emocional do evento. O primeiro episódio recua ao momento chave: um repórter fez um documentário sobre a fome na Etiópia que abalou o planeta. Geldof reagiu com indignação, formou a Band Aid e gravou a canção em semanas. O segundo mergulha na organização do concerto e nas suas injustiças: a ausência marcante de artistas africanos, as tensões logísticas, os egos e os bastidores pouco glamourosos, mas também emocionantes. O terceiro explora os efeitos colaterais e o legado do Live Aid, incluindo críticas ao ativismo-celebridade e reflexões sobre o impacto real dos fundos levantados

O documentário recupera os bastidores e várias curiosidades deliciosas. Como o facto de Phil Collins ter tocado em Londres, apanhado o Concorde e, horas depois, subido ao palco na América — um feito técnico e físico quase tão épico como o próprio evento. Ou o microfone que falhou quando Paul McCartney começou a cantar “Let It Be”, até que um coro de estrelas (David Bowie, Alison Moyet, Pete Townshend, entre outros) correu para o ajudar.

E depois há o momento que ficou para a história, talvez, como o mais arrebatador de todos: a atuação dos Queen, com Freddie Mercury a comandar milhares como um maestro da emoção coletiva. Mesmo quem não é fã da banda tem dificuldade em negar a força daquele instante — e o documentário mostra bem como foi tudo milimetricamente preparado (mas com alma).

O documentário não romantiza. Reconhece falhas e contradições: a crítica ao paternalismo ocidental, a ausência de vozes africanas no concerto e a complexidade da distribuição dos fundos doados. Surgem entrevistas emocionantes com figuras como a jovem etíope imortalizada num videoclipe dos The Cars que hoje aparece viva e bem de saúde, cinco décadas depois Bob Geldof, por sua vez, surge sem filtros: em lágrimas ao recordar o horror que presenciou, enfrentando acusações de “white saviour” com franqueza.

Mais do que nostalgia, “Live Aid at 40” é um lembrete poderoso: já houve um tempo em que a música servia algo maior, em que artistas deixavam os egos de lado e se juntavam por um bem comum. Hoje parece impossível. Mas aconteceu — e vale a pena lembrar.

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