10 álbuns: As escolhas de Luís Varatojo

Francisco Pereira

Luís Varatojo lançou o seu novo álbum do projeto Luta Livre e escolheu os 10 melhores álbuns de sempre.

Poucos músicos portugueses traçaram um percurso tão inquieto, coerente e singular como Luís Varatojo. Guitarrista, compositor e produtor, iniciou-se no final dos anos 80 ao comando dos Peste & Sida, banda emblemática do punk rock nacional, cuja energia irreverente marcou uma geração. 

Nos Despe & Siga, nos anos 90, deixou que o punk se misturasse com o ska e o reggae, num espírito mais solar e dançável, mas ainda profundamente urbano e interventivo. Daí avançou para experiências mais conceptuais, como a Linha da Frente, onde a poesia portuguesa do século XX encontrou a electrónica e a pulsação das ruas, e, sobretudo, A Naifa, talvez o seu projeto mais marcante e sofisticado. Ao lado de João Aguardela e Maria Antónia Mendes, reinventou o fado e a canção urbana com uma sensibilidade moderna e uma poesia combativa, abrindo um novo capítulo na música portuguesa contemporânea.

Mais tarde, com Fandango, uniu-se a Gabriel Gomes (ex-Madredeus e Sétima Legião) para explorar o diálogo entre a guitarra portuguesa, o acordeão e a electrónica — um encontro de tradição e modernidade que o jornal Público descreveu como “um guia turístico para dançar”. E já na década de 2020, com o projeto Luta Livre, Varatojo regressou à palavra como arma, fundindo jazz, rock e poesia num discurso abertamente político e social. O seu mais recente álbum, Contrafação, editado na semana passada, dá continuidade a essa linha de pensamento — um conjunto de canções de escárnio e maldizer sobre as “aventuras e desventuras de um português em Portugal”, onde o humor, a crítica e a empatia se equilibram com a leveza melódica e o rigor poético.

Hoje, ao escolher em exclusivo para o Mente Cultural os dez álbuns mais importantes da sua vida, Luís Varatojo oferece-nos um mapa íntimo das suas influências e paixões musicais. Mais do que um simples exercício de memória, esta seleção é um retrato do seu percurso: um músico que fez da liberdade estética e do pensamento crítico as suas bússolas, e que continua, disco após disco, a desafiar o conformismo e a procurar novas formas de dizer — e de ouvir — Portugal.

1. The Clash

London Calling (1979)

Os Clash são a minha banda preferida, gosto de tudo o que fizeram. Todos os álbuns são bons, dos mais simples e diretos, aos mais trabalhados e ecléticos. Os Clash criaram a sua própria forma de fazer música, alicerçada nos princípios do punk, mas sem nunca se limitarem a seguir uma fórmula. Construíram uma obra única e  inconfundível, articulando de forma perfeita as diferentes referências musicais dos quatro elementos da banda – rock, reggae, funk, etc. – com letras de teor social e político. O álbum London Calling é, para mim, o trabalho em que essa mistura saiu mais apurada. Ouvi este disco muitas vezes, decalquei as frases de guitarra e as linhas de baixo, cheguei a saber as letras de cor.

2. The Smiths

Hatful of Hollow (1984)

Guitarra, baixo, bateria e voz, tudo o que é necessário para se fazer uma banda de rock. Neste disco, com gravações mais rudimentares de algumas canções que haveriam de integrar o álbum homónimo e outras que só aqui tiveram edição, os Smiths apresentam um som cru, muito próximo do punk. Quase um registo maquete que capta sem distorções a verdadeira química da banda. Canções como “Handsome Devil” ou “What Diference Does It Make” são um bom exemplo disso.

3. Massive Attack

Blue Lines (1991)

No início dos anos 90 dominava a música mais pesada oriunda dos EUA. Bandas como Nirvana, Rage Against The Machine ou Metallica, entre outras, davam um novo impulso, a fórmulas já gastas, de rock, rap e funk. O som era fresco mas não propriamente novo. Até que surge em Inglaterra, mais propriamente em Bristol, o Trip hop. Massive Attack, Tricky e Portishead foram os pioneiros. O álbum Blue Lines foi o primeiro que ouvi e que me abriu o caminho para mergulhar a fundo naquela cativante sonoridade que misturava samples, instrumentos eletrónicos, guitarras, baterias e vozes sussurradas em cima de ritmos de hip hop em câmera lenta. O power não dependia das paredes sonoras de guitarras, das batidas pesadas e das vozes gritadas, podia muito bem ser conseguido de forma inversa.

4. Devo

Q. Are We Not Men? A: We Are Devo! (1978)

Era teenager no inicio dos anos 80 quando uma onda sonora vinda de Inglaterra e EUA tomou conta do air play. A New Wave trazia a urgência e a simplicidade do punk, mas disparava em várias direções, bandas como The Police, Blondie, Talking Heads, Devo ou Madness são um bom exemplo disso. Todas tinham um som fresco e atractivo, mas os Devo eram mesmo uma carta fora do baralho. Comecei por ouvir o single “Come Back Jonee” no programa Rock em Stock e depois descobri, no álbum, a versão de “I Can Get No Satisfaction”. Essa versão mostra bem o que eram os Devo pois a apropriação é total. É daqueles casos em que podemos dizer que a versão é melhor que o original. Mas o álbum tem outras boas como “Mongoloid” ou “Jocko Homo”.

5. Beastie Boys

Paul's Boutique (1989)

Foi este álbum que me apresentou à técnica da samplagem. Descobri-o em casa de um amigo, em Londres, que era jornalista do Melody Maker. Gravei-o numa cassete e trouxe-o para Portugal. Ouvi essa cassete muitas vezes, pois a cada audição descobria algo de novo. A variedade de sons, decorrente do uso de samples, conferia ao disco uma riqueza cromática que seria impossível de obter com um line up clássico de banda rock. A produção dos Dust Brothers é exemplar, e a banda atingiu aqui o auge da criatividade em estúdio. Canções como “Shake Your Rump”, “Johnny Real” ou “Hey Lady” são um bom exemplo disso.

6. Xutos & Pontapés

Cerco (1985)

Um álbum gravado no Rock Rendez Vouz em 1985 que aborda, sem pieguices, a realidade da época e os anseios de uma geração. O desemprego e a falta de perspectivas, a claustrofobia da cidade, o amor e o sexo. Também é um marco na construção do som Xutos, pois é o primeiro álbum com a participação de João Cabeleira. Guitarras com delay à The Edge, frases simples e fortes, balanço certo a colar a uma secção rítmica segura. Nos ensaios dos Peste & Sida costumávamos tocar algumas músicas deste álbum como “Barcos Gregos” ou “Voo Das Águias”, por exemplo.

7. GNR

Os Homens Não Se Querem Bonitos (1985)

Comprei este álbum sem saber o que tinha dentro. Encontrei um som surpreendente, novo, com guitarras experimentais e batidas soltas em canções assumidamente pop, coroadas pela ironia assertiva do Rei Reinininho. É um álbum de polaroids, com cores vivas, bem puxadas, da vida nos anos 80. As letras, como é hábito no Reininho, têm sempre várias leituras e essa ambiguidade é refletida também nos arranjos que marcam o ambiente das canções. “Dunas”, “Sete Naves”, “Freud & Ana” e “Sentidos Pêsames” são as minhas preferidas.

8. António Variações

Dar e Receber (1984)

António Variações só gravou, infelizmente, dois álbuns, mas ambos são pérolas de originalidade e genuinidade. Escolho o segundo, não porque a qualidade das composições, letras e interpretações sejam superiores às do primeiro, Anjo da Guarda, – nesse capítulo um não deve nada ao outro, Variações fazia sempre bem – mas sim por ter uma instrumentação e uma produção muito mais competentes. Sem beliscar o exotismo das canções, percebendo muito bem a obra e o artista, os músicos e produtores, membros dos Heróis do Mar, fizeram o que os músicos dos GNR não conseguiram fazer no primeiro álbum – produção à altura das canções que tinham em mãos. “Erva Daninha a Alastrar”, “Canção de Engate” e “Dar e Receber” são as minhas favoritas.

9. Amália

Com Que Voz (1970)

O disco começa com “Com que Voz”, um poema de Luis de Camões magistralmente musicado por Alain Oulman, que assina todas as composições. E está dado o mote para a qualidade literária e musical que encontramos em todo o álbum, com poemas de Cecília Meireles, David Mourão Ferreira, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, entre outros ilustres. Depois há os riffs de guitarra de José Fontes Rocha e o acompanhamento delicado que confere à voz da diva. Quando ela canta é impossível ficarmos indiferentes, as palavras saem-lhe cheias de sentido e atingem-nos como setas. Especialistas dizem que este álbum é o auge da carreira discográfica de Amália. Eu concordo.

10. José Afonso

Cantigas do Maio (1971)

De José Afonso também podemos dizer que tudo o que fez foi bem feito, mas há, obviamente, momentos que se destacam. Um deles é o álbum Cantigas Do Maio. Se não fosse por mais nada, só o facto de conter a canção que serviu de senha à revolução de 25 de abril de 1974, e que é conhecida além fronteiras em tão larga escala como “Abril Em Portugal”, mesmo não tendo integrado nenhum filme de Hollywood, já valia a pena o destaque. Mas vale também pela pela refinada qualidade das canções, que atingem, aqui, o auge de lirismo poético revolucionário que José Afonso vinha afinando de disco para disco. E vale também pela produção imaculada de José Mário Branco, que se foca no essencial e deixa de fora maneirismos e artefactos. Para além de “Grândola Vila Morena”, gosto sobretudo da canção homónima “Cantigas Do Maio”, de “Maio Maduro Maio” e do “Coro Da Primavera”.