Dia 1
No primeiro dia do Primavera Sound Barcelona, o destaque foi para quem preferiu reinventar o que significa ser uma estrela pop. Que o diga FKA twigs, que precisou apenas de uma estrutura metálica para montar um espectáculo dividido por “capítulos”. Trocando os habituais excessos cénicos por uma estética minimalista, a artista britânica deixou claro que a sua presença, o corpo e a voz chegam para ocupar o imenso palco da Estrella Damm. Houve dança, houve acrobacias no varão, houve coreografia com espada em fundo vermelho em “Numbers” , e também houve espaço para a intimidade de “Home With You” ou “Cellophane”. Uma espécie de concerto pop em negativo, onde se apaga o ruído para deixar falar o essencial. Quem quiser pode confirmar tudo nesta edição do festival Kalorama, que se realiza entre 19 e 21 de junho, no Parque da Bela Vista.
Noutros pontos do Parc del Fòrum, o concerto de Nourished by Time foi um exercício de percepção sonora. Marcus Brown apareceu em palco com a voz grave a comandar um universo feito de fragmentos: havia ecos de The Avalanches, Outkast, Future Islands ou The Blue Nile. Mas o resultado era sempre outro, algo que só ele está a fazer neste momento.
Já os Magdalena Bay mergulharam num pop de mil referências (de ABBA a Gwen Stefani), mas em vez de se perderem no passado, acabaram por oferecer um momento refrescante e energético, muito por culpa da entrega de Mica Tenembaum. Um concerto que provou que a nostalgia também pode soar a novo.
Charli XCX e Troye Sivan encerraram o dia com “SWEAT”, o espectáculo que tem corrido os EUA e teve aqui a sua única paragem europeia. Os dois artistas vivem o pico das suas carreiras e souberam transformar isso num concerto conjunto onde se cruzaram duas linguagens, dois mundos e uma energia comum. Troye Sivan celebrou os 30 anos em palco e levou o conceito de “evil twink” ao limite com coreografias quentes e acelerações rítmicas em faixas como “Rush”. Charli XCX trouxe os hinos de “Brat” e percorreu o palco como quem tem algo a provar. Deu tudo: correu, saltou, rebolou e cantou. Quando os dois se encontraram em “1999” e “Talk Talk”, já o público estava completamente rendido. No final, Chappell Roan apareceu nos ecrãs a dançar a coreografia viral de “Apple Girl” e fechou a festa.
Horas antes, com o sol ainda alto, beabadoobee conquistava os fãs com uma mistura de melodia e distorção suave, entre o grunge dos anos 90 e a doçura pop da viragem do século. Em “She Plays Bass”, bastou-lhe um gesto para fazer a plateia saltar. O carisma discreto desta artista filipino-britânica está a criar um público fiel que cresce a olhos vistos.
No mesmo registo de ligação intensa com o público, os IDLES voltaram a provar que são uma das bandas ao vivo mais potentes da actualidade. O palco Revolut foi pequeno para tanta energia. Houve mosh, crowd surfing e gritos de união. A dedicação de “Danny Nedelko” ao povo da Palestina e a todos os que lutam “do lado certo da história” foi um dos momentos mais politicamente marcantes do dia. A banda de Bristol cresce em tamanho e em som, mas continua a levar para os grandes palcos a intensidade de uma sala pequena.
Dia 2
No segundo dia do Primavera Sound em Barcelona, a nostalgia encontrou a ironia e juntas ofereceram um espectáculo pop onde passado e presente se confundiram num jogo de espelhos. Foi o caso de Sabrina Carpenter, que se estreou em Espanha com um concerto no palco Revolut. Ela e o seu exército de fãs, na maioria demasiado novos para terem vivido os anos 80, partilharam um entendimento quase instintivo dos clichés visuais da década. Desde os visuais de noticiário brilhante que abriram o concerto, até ao cenário que misturava estética de programa de televisão com casa de bonecas, tudo parecia um prolongamento conceptual do universo Barbie de Greta Gerwig e Margot Robbie.
Mas Sabrina não se ficou pelos cenários. O concerto foi uma maratona de hits, frases certeiras, chapéus de cowgirl e estreias: além de ser o seu primeiro concerto em solo espanhol, a artista apresentou ao vivo o novo single “Manchild”, lançado horas antes. A setlist fechou com “Don’t Smile” e “Espresso”, em modo de catarse pop total.
Ao lado, no palco Cupra, os TV on the Radio mostraram como continua a haver apetite pelo seu rock visceral, com uma interpretação arrebatadora de “Wolf Like Me” a fazer jus ao clássico. Um dos momentos mais potentes do dia.
O cartaz de sexta-feira provou que o Primavera é também um palco para a força feminina na música. Começou com Ikura, dos YOASOBI, que fizeram a estreia europeia com um concerto multicolorido e acelerado, mais inspirado em bandas sonoras de anime e videojogos do que em qualquer tradição pop ocidental. Depois, Ellie Rowsell liderou os Wolf Alice com firmeza, antecipando o novo álbum e puxando pela veia mais dura da banda.
O dia seguiu com o regresso dos Beach House, com Victoria Legrand a voltar a envolver o público na sua bruma dream pop, depois de terem actuado em modo mais intimista na cidade dois dias antes. Mas foi com as HAIM que se celebrou verdadeiramente. Sete anos depois da última passagem pelo festival, as irmãs Este, Danielle e Alana regressaram com vontade de fazer desta noite algo para recordar. O concerto foi uma colecção de canções que já são clássicos modernos do pop-rock, agora com reforço do novo álbum “I Quit”, que serve de fio condutor ao concerto.
Mensagens como “I quit thinking I’m the problem” ou “I quit your shit” apareceram em neon num ecrã gigante, como se cada canção fosse também uma pequena declaração de intenções. Pelo meio, houve piadas sobre namorados para Danielle, histórias de corações partidos e pedidos de saxofone extra que foram concedidos com “Summer Girl”, num final que trouxe o verão para o Parc del Fòrum.
Dia 3
O terceiro e último dia do Primavera Sound em Barcelona foi um equilíbrio entre fantasia pop, consciência política e celebração coletiva. No palco Estrella Damm, Chappell Roan apresentou um espectáculo com cenário de castelo gótico, digno de um conto de fadas moderno. Mas ao contrário das princesas aprisionadas, a autoproclamada Midwest Princess mostrou-se no comando desde o primeiro acorde de “Super Graphic Modern Girl”. Entre coreografias bem ensaiadas (como em “HOT TO GO!”), novas canções ainda por editar (“The Subway”) e recados públicos aos ex-namorados lidos em voz alta, foi criando um ambiente de catarse partilhada. A fechar, “Pink Pony Club” foi cantada como um hino sem tempo, depois de “Red Wine Supernova” e “Good Luck, Babe!” incendiarem o público. A mensagem era clara: prazer nunca é culpa.
A dimensão política atravessou grande parte do dia. No mesmo palco, os Black Country, New Road tocaram na íntegra o álbum “Forever Howlong”, agora mais próximo da pop de câmara do que do pós-punk das origens, mas com a mesma intensidade emocional. No final, fizeram questão de lembrar o sofrimento em Gaza. Uma mensagem que encontrou eco em Raygun Busch, vocalista dos Chat Pile, que entre referências cinéfilas partilhadas como quem actualiza o Letterboxd, sublinhou o mesmo apelo por justiça. Alan Sparhawk, numa actuação onde misturou a electricidade dos Retribution Gospel Choir com o intimismo de Low, fechou com uma inédita, “No More Darkness”, deixando o conselho mais simples e urgente do dia: “sempre que puderes, escolhe um pouco de luz”.
O concerto de Chappell Roan fechou um triângulo de estrelas pop femininas, ao lado de Charli XCX e Sabrina Carpenter. E horas depois, no palco Amazon Music, os Turnstile fecharam outra tríade, a do novo rock que marcou o festival. Depois dos IDLES na quinta-feira e dos Fontaines D.C. no sábado, a banda trouxe a força melódica do álbum “Romance” sem perder a intensidade do costume. Também aqui a política esteve presente, com mensagens no ecrã a denunciarem o genocídio na Palestina.
Se houve um momento em que a música cedeu espaço à urgência ambiental, foi com ANOHNI and the Johnsons. O espectáculo “Mourning the Great Barrier Reef” combinou canções com entrevistas a cientistas, alertando para a destruição dos oceanos e o impacto nas nossas vidas. A voz única de ANOHNI conduziu o público por um lamento empático, entre versões de “Sometimes I Feel Like a Motherless Child” e uma nova leitura de “Drone Bomb Me”, agora com arranjos orgânicos.
O encerramento emocional de ANOHNI encontrou contraponto no final libertador com os LCD Soundsystem. James Murphy transformou o palco num espaço de comunhão dançável, onde o “direito à festa” é levado a sério. Entre novidades como “x-ray eyes” e “new body rhumba”, e clássicos como “Dance Yrself Clean” e “All My Friends”, o concerto foi uma celebração colectiva e um fecho simbólico para esta edição histórica do Primavera Sound Barcelona. Já com os olhos postos em 2026, o festival despediu-se com promessas de regresso entre os dias 4 e 6 de junho do próximo ano.