15 álbuns: As escolhas dos Memória de Peixe

Francisco Pereira

Miguel Nicolau, Filipe Louro e Pedro Melo Alves escolheram cada um 5 discos que os marcaram na vida.

Os Memória de Peixe são um projeto nascido da perseverança de Miguel Nicolau. Depois de dois álbuns, o primeiro homónimo (com Nuno Oliveira) e o segundo intitulado Himiko Cloud (na companhia de Marco Franco), Nicolau vê-se acompanhado agora por dois outros músicos, Pedro Melo Alves e Filipe Louro.

Este trio tomou conta do estúdio e lançou há bem pouco tempo o terceiro capítulo do projeto Memória de Peixe, III. Este é um disco que “fala de recomeços” e que se propõe “a imaginar mundos melhores”. Nós não temos dúvidas: III torna o mundo melhor.

Para o Mente Cultural, o trio escolheu 15 discos (cada membro escolheu 5) que dão uma amostra do percurso musical de cada um.

1. Bernardo Sassetti Trio2

Ascent (2005)

Escolha de Pedro Melo Alves

As minhas escolhas são símbolos que representam uma curta selecção de epifanias pessoais – descobertas que, através da música, abriram portões de percepção, reconfiguraram referências estruturais e definiram a partir desse momento os meus passos seguintes de procura artística. O Bernardo Sassetti e a música dele, que me chegou primeiro através da banda sonora do “Alice” (2005) do Marco Martins, foi uma das revoluções artísticas mais profundas que tive. E também das primeiras, numa fase mais madura de procura. Primeiro através do “Alice”, depois dos seus álbuns em trio com o Carlos Barretto e Alexandre Frazão, “Nocturno” (2002), seguido do “Motion” (2010) e, finalmente, tendo acabado a devorar toda a sua discografia inúmeras vezes, foi com a música do Sassetti que estabeleci uma relação com a poesia do invisível, um reconhecimento do espaço e silêncio como anti-matéria ressonante e carregada de lições. E também foi com ele que passei a nutrir uma admiração pelo lirismo mais sensível, refinado e minimalista, o mistério aberto das coisas simples que funcionam com uma profundidade incompreensível. Na mesma categoria de lições poderia ter igualmente citado o Morton Feldman, um dos poetas sonoros a quem mais recorro quando me quero voltar a apaixonar pela magia pura dos timbres, harmonias, ressonâncias e espaços acústicos.

2. György Ligeti – The Ligeti Project

Clocks and Clouds (2008)

Escolha de Pedro Melo Alves

O Ligeti é outro dos meus mestres pessoais, a quem devo uma reestruturação interna do que é possível imaginar através do som. Com a música dele acedi a uma visão do intangível, da extrapolação dos limites da realidade, quase como se fosse possível experienciar sensorialmente outros sentidos ou dimensões do espaço e tempo. Ou pelo menos expandir a amplitude dos nossos sentidos actuais. Cito aqui a colectânea de cinco CDs “The Ligeti Project” mas refiro-me em particular a obras como o “Clocks and Clouds”, “Lontano”, “Lux Aeterna” ou “Melodien” que serviram de cartão de visita para este universo de extrema criatividade e arrojo. A “Clocks and Clouds” é possivelmente das músicas cuja escuta já repeti vezes mais na minha vida. E associado a esta escolha também poderia citar outros exemplos de grande importância para as minhas referências expansionistas da magia do onírico, do sonho, da fantasia, como o Claude Debussy e os seus Nocturnos, o Ravel e a sua escrita para piano, Messiaen ou Takemitsu.

3. John Hollenbeck Large Ensemble

Eternal Interlude (2009)

Escolha de Pedro Melo Alves

Das várias referências que poderia ter escolhido para representar todas as descobertas que marcaram a fusão das minhas procuras enquanto músico jazz improvisador e enquanto compositor e melómano de música clássica e erudita, este “Eternal Interlude” do John Hollenbeck Large Ensemble é provavelmente o mais estrutural. Foi aqui que senti pela primeira vez a riqueza tímbrica da escrita orquestral, o fenómeno onírico e ambicioso transportado para o recorte rítmico do jazz e as dinâmicas espontâneas da improvisação. Terá sido um dos discos com mais escutas acumuladas na minha vida de estudante. Carrega cor, luz, mistério, um tom de leveza espiritual e um tipo de experimentalismo muito esclarecido que, apesar de não deixar assim tantas perguntas em aberto, serviu para me conduzir para um encantado mundo de possibilidades. Agora ouvindo-o de novo, reconheço o quanto influenciou a minha escrita em projetos como o meu Omniae Large Ensemble, The Rite of Trio ou In Igma. Na mesma linha de pensamento outros álbuns serviram de sequela a esta sensação, como o “Les deux versants se regardent” da Eve Risser, o Evan Parker Electroacoustic Ensemble ou o Christian Wallumrød Ensemble.

4. Ryoji Ikeda

Supercodex (2013)

Escolha de Pedro Melo Alves

Quando penso nas revoluções internas que fui tendo, talvez uma das mais substanciais seja a abertura a um tipo de hiperminimalismo altamente focado, com diferentes formas, que me causa sempre um grande impacto físico. Consigo citar vários exemplos com naturezas distintas, mas todas partilham um encantamento pela abstracção pura e pelo detalhe microscópico que nos despe de formas pré-concebidas de experiência musical. Há uma certa mira para o infinito micro e macro – salve a redundância – sem formas, limites, definições que, através de material geralmente depuradíssimo, abre portas para novas possibilidades intelectuais e sensoriais. E uma das primeiras vezes que senti isto com um grande carácter, foi quando me mostraram o “Supercodex” do Ryoji Ikeda. Houve algo neste som puro de impulsos digitais, nestas paisagens estáticas embora altamente intrincadas e organizadas, nesta escolha obsessiva de timbres indefiníveis, que me causou muito fascínio. É um tipo de música eletrónica que nem sempre fica nessa dimensão abstrata e por vezes acaba a cair numa lógica de clubbing alternativo onde esta magia mais intangível se perde. Mas abriu portas para continuar essa procura abstracta focada, como no “Sval Torv” dos Streifenjunko, em Yannis Kyriakides, Tristan Perich ou em artistas de noise como Toshimaru Nakamura ou o clássico Merzbow.

5. Steve Lehman

Sélébéyone (2016)

Escolha de Pedro Melo Alves

Ultimamente, uma das revoluções que mais me seduz está no cruzamento funcional entre mundos estéticos underground e eruditos, que geralmente reflectem um cruzamento filosófico mais profundo entre arte popular e arte académica, recursos eletrónicos e recursos analógicos, statements viscerais e statements intelectuais. E nesse sentido, um álbum que se tornou um autêntico caso de estudo assim que o ouvi foi o “Sélébéyone” do Steve Lehman, que agarra o discurso de jazz contemporâneo do Steve e o coloca num contexto de hip-hop urbano disruptivo, todos com iguais níveis de profundidade, todos com uma dose saudável de conflito e fusão, e definitivamente com uma urgência extremamente cativante. Da mesma forma que este, também me assolaram na mesma altura o “Junk Magic” do Craig Taborn ou o “Technoself” do Deantoni Parks, que para mim se tornaram paradigmáticos para um pensamento electroacústico dos nossos dias. E, como estes, há uma linha actual de procura de artistas como o duo Christian Lillinger / Elias Stemeseder ou o Lukas Koenig, que estão a levar estas fusões de recursos e linguagens a um ponto muito extremo que eu recomendo seguir com atenção.

6. Tashi Quartet

Messiaen: Quatuor pour la fin du Temps (1976)

Escolha de Filipe Louro

A matéria musical parece fruir de etimologias — ora decifráveis, ora crípticas, ora ainda por descobrir… Sempre que penso nesta peça, penso na sua possível etimologia. Talvez a da transfiguração: da dor pela fé, da efemeridade pela eternidade. Uma das obras musicais com tempo e contexto mais específico de sempre. “Louange à l’Éternité de Jésus” é para mim um momento absoluto. Não há palavras suficientes, quase nem sequer parece haver possíveis.

7. The Books

Thought for Food (2011)

Escolha de Filipe Louro

Música como brincadeira de criança, como livro de álgebra, como construção em Lego, como projeto de engenharia civil. Simplicidade na excentricidade e excentricidade na simplicidade. Com humor, também. Um disco para mim absolutamente único, incrível, celebratório, ainda hoje surpreendente.

8. Fernando Falcão

Memória das Águas (2019)

Escolha de Filipe Louro

Não consigo lembrar-me como nem porquê este disco entrou na minha vida, mas sei que foi com a música “Curimão” — cartão de visita assertivo! Depois a faixa que abre e dá nome ao disco acabou por capturar-me para dentro dele. É uma obra muito especial, com música vinda de várias direções, de um sítio de ancestralidade e pura experimentação. Rítmica nuclear, ritual sensorial, paisagismo sonoro envolvente e místico. Vector telúrico bem firme e inventivo. É um fartote!

9. Panda Bear

Young Prayer (2004)

Escolha de Filipe Louro

A gentileza é sagrada. Sempre é tempo, e sempre iremos a tempo, espero, mas acho que já merecíamos um pouco mais. É um álbum muito profundo e delicado, que se ergue como dois braços para um abraço bom. Evocativo e meigo, sinto que este disco é um amigo.

10. Dawn of Midi

Dysnomia (2015)

Escolha de Filipe Louro

Acho que foi o disco que mais pensei ao longo do tempo e o disco que mais vi ao vivo. Vou tentando expressar o que sinto com e por ele, e neste momento é isto: ouvi-lo é como sentir que ele saiu de dentro de mim, e ao mesmo tempo, nunca existiu — permanecendo sempre o mistério.

11. My Bloody Valentine

Loveless (1991)

Escolha de Miguel Nicolau

Este disco, esta banda, esta identidade: toda a construção sónica e quântica do quão mágico e, simultaneamente, sinuoso e trabalhoso foi chegar a uma assinatura tão específica, tão única — e ainda assim, preservar no meio da massa sonora a ideia de melodia. Muitas vezes sussurrada, no meio de um mar de distorção. Não sei quantas vezes ouvi este disco, nem quantas vezes os vi. Mas nunca mais me vou esquecer da experiência que foi no Primavera Sound de Barcelona, em 2009. Únicos.

12. Carlos Bica & Azul

Believer (2006)

Escolha de Miguel Nicolau

Outro dos discos que mais ouvi na vida. Profunda admiração pela música aqui criada — pela ideia de canção, pelo espaço em suspenso, pela contenção, pelo lado cinematográfico.

Este disco abriu-me mundos: pelos músicos que compõem este trio mágico, pelos trabalhos que desenvolvem enquanto compositores, pelas atmosferas. O Carlos Bica foi também uma pessoa extremamente generosa, que me respondeu a um e-mail numa das alturas mais determinantes da minha vida. É um herói que tenho o prazer de conhecer — e por quem nutro uma admiração enorme, pela pessoa e pelo músico. Este disco foi importantíssimo no meu percurso. E será sempre.

13. Deerhoof

Deerhoof vs. Evil (2011)

Escolha de Miguel Nicolau

Outro dos grandes mergulhos que fiz — foi na música dos Deerhoof. Vivi, e vivo, intensamente cada álbum desta banda, mas esta fase foi muito estimulante para mim. Canções sabotadas, expressionistas, electrónica e pura vertigem. Composições desafiadoras. Um dos meus heróis que tive o privilégio de conhecer — Greg Saunier — fez-me repensar a música e a forma como olho para ela. Toda a parte associada: psicologia, criatividade, impulso. É considerado por muitas bandas como um dos génios vivos. Nunca vi tantas entrevistas de alguém como vi dele. Disse-lho em pessoa. Ele riu-se. Não fugiu.

Das bandas que mais liberdade criativa me inspiraram. Recorri muito a eles em momentos de bloqueio.

14. Radiohead

In Rainbows (2007)

Escolha de Miguel Nicolau

Outro disco que, quando ouvi, foi uma pedrada no charco da minha existência. Se os Radiohead têm álbuns mais emblemáticos? Talvez. Mas este foi o que mais me marcou. Profundamente. Marcou a minha ideia de banda, de composição estendida, de timbre, de textura, de simplicidade. E na altura rasgaram o modelo de indústria, oferecendo o disco sem preço. Um acto de liberdade tão poderoso quanto a própria música.

15. Grizzly Bear

Veckatimest (2009)

Escolha de Miguel Nicolau

Esta banda é de outro mundo — e cabem muitos mundos nestas canções. Foi muito marcante ouvir este disco. Ouvi-o muitas vezes num estado de adormecimento. Canções em estado puro, arranjos vocais belíssimos, e uma simplicidade intrigante. Fez com que ficasse para sempre no meu subconsciente, provavelmente.