On Becoming a Guinea Fowl: o que se cala também se herda

Eduardo Marino

O vencedor do IndieLisboa 2025, é um filme vindo da Zâmbia, sobre o que passa de geração em geração sem se dizer em voz alta.

Vencedor da Competição Internacional do IndieLisboa 2025, On Becoming a Guinea Fowl é uma estreia surpreendente, vinda da Zâmbia e produzida pela A24, que continua a apostar em vozes singulares fora do circuito norte-americano. Realizado por Rungano Nyoni — que já tinha dado nas vistas com I Am Not a Witch — o filme parte de um episódio aparentemente simples: a morte súbita de um tio numa estrada à beira de um bordel. Mas o que começa como um drama discreto transforma-se, aos poucos, numa dissecação meticulosa das estruturas sociais, da herança emocional e dos traumas silenciados que atravessam gerações.

O título — On Becoming a Guinea Fowl — remete para a ave africana conhecida pelo seu comportamento esquivo e por emitir sons estridentes quando se sente ameaçada. Aqui, a metáfora funciona a vários níveis: fala de mulheres que crescem a aprender a fugir, a disfarçar, a não fazer barulho. E também daquilo que acontece quando já não é possível calar.

A história desenrola-se durante os dias de luto, em que familiares e vizinhos se vão reunindo, trocando histórias, julgando comportamentos e mantendo a todo o custo uma fachada de normalidade. Mas à medida que surgem insinuações sobre o passado do falecido — e sobre o que várias mulheres terão vivido nas suas mãos — instala-se uma tensão surda. Quem sabia? Quem não quis saber? O que se transmite numa família quando o silêncio é a forma mais segura de sobreviver?

A realizadora questiona a cultura do respeito pelos mais velhos, quando ela serve de capa para o abuso, e mostra como a vergonha pode ser herdada, mesmo quando não se sabe ao certo porquê.

Apesar de se passar na Zâmbia, o filme ressoa universalmente. A forma como aborda o machismo estrutural, a culpa colectiva e a necessidade de quebrar ciclos torna-o um objeto cinematográfico urgente e ao mesmo tempo intimista. A escolha da A24 em apoiar o projeto reforça o seu compromisso com cinema autoral que não procura agradar, mas sim provocar reflexão.

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