“Tudo do amor” foi publicado pela primeira vez no final de 1999. É em 2023 que nasce a primeira edição portuguesa pela Orfeu Negro. Demorou, mas veio em boa hora.
Quando abri o livro pela primeira vez, antes de o comprar, vi que estava impresso com letra vermelha. Estranhei. É de facto algo inusitado, raro, estranho. Achei que poderia ser um deal breaker para o conseguir ler. Mas o bichinho ficou cá e passado um ano acabei por comprar o livro. Comecei a ler há uma semana e estou já perto do fim, o que significa que a letra vermelha não foi, de todo, um impeditivo.
Quis saber o porquê da letra vermelha e, tanto quanto me foi possível descobrir, esta é uma característica da edição portuguesa. Terá sido uma escolha específica da Orfeu Negro para a edição portuguesa, que reflete a abordagem cuidadosa e artística da editora no design dos seus livros. E porquê? Será que é porque dizem que o vermelho é a cor do amor? Ou será que é porque é uma cor chamativa, tal como a mensagem transformadora de bell hooks sobre o amor enquanto força política e social?
Para falar do livro é importante falar primeiro de bell hooks (sim, com minúsculas). Este é o pseudónimo de Gloria Jean Watkins, nascida em 1952 em Hopkinsville, Kentucky, numa família afro-americana de classe trabalhadora. A autora viveu o impacto direto do racismo e do patriarcado, temas que iria desenvolver ao longo da sua vida. É descrita como uma das mais importantes intelectuais feministas e críticas culturais dos Estados Unidos. O seu pseudónimo foi criado em homenagem à sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. O facto de usar letras minúsculas no seu pseudónimo serviu para dar ênfase às suas ideias, e não à sua identidade pessoal (e esta, hein?). Morre em 2021 aos 69 anos. Penso que ainda teria muito para dizer e escrever.
Mulher afro-americana, de grandes conquistas, foi escritora, académica e ativista, publicou mais de 30 livros sobre temas como feminismo, raça, classe, amor, espiritualidade e cultura. Aquilo que deixou escrito é estabelecido por muitos como uma via de promoção da igualdade e justiça social. E o melhor? Consegue combinar teoria crítica e linguagem acessível. Não será o que estamos todos a precisar? É que bell hooks deixou um grande legado, oferecendo perspetivas transformadoras sobre como viver e amar de forma ética e inclusiva. Talvez algo que o mundo esteja a precisar desesperadamente.
Voltando ao amor, ou melhor, a “Tudo do amor”. Este é um livro escrito num tom pessoal, com uma visão feminista e filosófica. Ao longo da sua introdução e dos seus 13 capítulos, encontramos uma filosofia sobre o amor. Para a autora, amor rima com clareza, justiça, honestidade, compromisso, espiritualidade, valores, ganância (a ausência dela), comunidade, reciprocidade, romance, perda, cura e destino.
Não faltam exemplos da vida dela. Falando com profundidade, mas respeitando algum mistério, bell escancara o coração dela para abrirmos o nosso. O amor surge, então, além da relação amorosa e podemos perceber mais sobre como o amor é político, social e cultural. Mas também reside na família, nas amizades e no espírito. De facto, há em todo o livro um teor marcadamente espiritual ou religioso com o qual não me revejo, mas que traz leveza e uma energia enorme de aceitação. Para mim serviu ler simbolicamente as passagens bíblicas que são apresentadas.
Outro ponto importante é quando a autora demonstra que consegue fazer, sem esforço, ligações entre temas, sempre pontuadas por outras obras ou referências a determinados momentos ou características culturais ocidentais. Fiquei surpreendida como ela não se perde e se foca a cada parágrafo que passa.
Existem algumas passagens e frases que me fizeram respirar fundo e reler, parando por momentos. A que trago para aqui é esta: “Muitos de nós desejamos amar, mas falta-nos coragem para correr riscos”. Agora inspirem profundamente e expirem, deitando fora todo o ar. Leiam novamente. Que frase, não é? Querem mais uma? “Abraçar uma ética amorosa significa utilizar todas as dimensões do amor – cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento.”
É uma leitura interessante para quem deseja repensar o amor de forma consciente e crítica, pois oferece uma combinação entre análise cultural, experiência pessoal e práticas espirituais. Pode ser lido de forma mais fácil, ao ser acessível, mas também pode ser lido e “respirado”, para que o seu conteúdo se entranhe noutros lugares dentro de nós.
Termino com a redefinição que a autora faz do amor. Para além de emoção ou desejo, o amor é uma escolha ativa que exige responsabilidade, cuidado, compromisso, e respeito mútuo. Configura-se como “a vontade de nutrir o próprio crescimento espiritual e o de outro”, de acordo com hooks. Mata-se o amor romântico, espiritualiza-se a emoção e critica-se fortemente o patriarcado. Só por esta última, eu aconselho vivamente.